O estudante de medicina Enya Egbe, de 26 anos, saiu da aula de anatomia chorando depois de ficar perturbado pelo cadáver que teve de analisar. Não foi a reação de um jovem inexperiente. Ele se lembra vividamente daquela tarde, sete anos atrás, na Universidade de Calabar, na Nigéria, quando estava com outros alunos em torno de três mesas com um corpo em cada uma delas. Minutos depois de se aproximar, ele gritou e correu. O cadáver que ele estava prestes a dissecar era de Divine, seu amigo. “Costumávamos ir a clubes juntos”, ele me contou. “Tinha dois buracos de bala no lado direito do peito dele.”
Oyifo Ana foi um dos muitos alunos que correram atrás de Egbe e o encontraram chorando do lado de fora. “A maioria dos cadáveres que usamos na escola tinham marcas de balas. Eu me senti muito mal quando percebi que algumas daquelas pessoas poderiam não ser criminosos de verdade”, disse Ana. Ela lembrou que, numa manhã, viu uma van da polícia carregada com corpos ensanguentados chegando à escola de Medicina, que tinha um necrotério anexo.
Egbe enviou uma mensagem para a família de Divine que, ao que parece, tinha ido a diferentes delegacias depois que ele e três amigos foram presos por agentes de segurança no caminho de volta de uma noitada. A família finalmente conseguiu recuperar o corpo dele.
Em depoimento por escrito apresentado ao painel judicial no Estado de Enugu, o comerciante Cheta Nnamani, de 36 anos, disse que ajudou agentes de segurança a se livrarem dos corpos de pessoas que eles torturaram ou executaram. Ele disse que, certa noite, ele foi convidado a carregar três cadáveres em uma van — tarefa conhecida na linguagem da cadeia como “serviço de ambulância”. A polícia, então, o algemou dentro do veículo e dirigiu até o Hospital Universitário da Universidade da Nigéria (UNTH), onde Nnamani descarregou os corpos. Eles foram levados por um atendente do necrotério.
Na cidade de Owerri, no sudeste do país, o necrotério do hospital particular Aladinma diz que parou de aceitar corpos de supostos criminosos, porque a polícia raramente fornecia identificação ou notificava parentes do falecido. Isso costumava deixar o necrotério cheio, com os custos de manutenção dos corpos não procurados até que, a cada alguns anos, o governo concedia uma permissão para enterros em massa.
“Às vezes, a polícia tenta nos forçar a aceitar os corpos, mas insistimos para que os levassem a um hospital do governo”, disse Ugonna Amamasi, administrador do necrotério. “Necrotérios privados não estão autorizados a doar corpos para escolas de medicina, mas os do governo podem”, acrescentou.
Parentes deixados no escuro
Um advogado experiente, Fred Onuobia diz que parentes tinham o direito de recolher os corpos de criminosos executados legalmente. “Se ninguém aparece depois de um certo tempo, os corpos são enviados para hospitais universitários”, disse o advogado.
Mas a situação é pior com as execuções extrajudiciais, já que os parentes nunca ficam sabendo das mortes ou não conseguem localizar os corpos, disse ele. Afinal, foi apenas por acaso que a família do amigo de Egbe conseguiu fazer um enterro adequado.
A associação de anatomistas da Nigéria está agora fazendo um lobby por uma mudança na lei que garanta que os necrotérios obtenham registros históricos completos dos corpos doados às escolas, além do consentimento da família. Também estabelecerá incentivos às pessoas a doarem seus corpos para a Medicina.
Quanto a Egbe, ele ficou tão traumatizado ao ver o corpo do amigo que abandonou os estudos por semanas, imaginando Divine em pé ao lado da porta, sempre que tentava entrar na sala de anatomia. Ele se formou um ano depois de seus colegas de classe e agora trabalha em um laboratório.
A família de Divine conseguiu fazer com que alguns dos oficiais envolvidos no assassinato fossem demitidos — justiça que muitos consideram ser insuficiente, mas melhor do que a vivida por muitos outros nigerianos cujos entes queridos foram vítimas de violência policial e também podem ter acabado em escolas de Medicina em todo o país. ( com informações do G1)
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