O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) abriu, nesta semana, um processo ético para discutir a presença da imagem da cantora Elis Regina, morta em 1982, em um comercial da Volkswagen.
A propaganda, que comemora os 70 anos da montadora no Brasil, teve enorme repercussão nas redes sociais na semana passada e abriu um grande debate sobre a utilização de ferramentas de inteligência artificial em comerciais e se isso pode, ou não, enganar os consumidores.
Não é a primeira vez que pessoas falecidas participam de comerciais – mas, neste caso, a imagem de Elis foi inserida na publicidade por meio de um processo chamado deepfake. Nesta semana, ainda, a cantora Madonna teria deixado instruções claras de que, após sua morte, sua imagem não deverá ser utilizada para construções a partir de inteligência artificial.
Conar deverá julgar ética e veracidade
O julgamento do Conar, que ainda não tem data, deverá analisar se os herdeiros podem autorizar o uso da imagem de uma pessoa que já morreu em campanhas.
Além disso, o Conar levantará pontos como o respeito à personalidade e existência da artista, e a veracidade do comercial – uma vez que, segundo o órgão, ele pode “causar confusão entre ficção e realidade para alguns, principalmente crianças e adolescentes”.
O Conar não tem a prerrogativa de proibir a veiculação de campanhas, mas pode orientar para que seus filiados não as veiculem. O Conselho ainda não definiu a data do julgamento, nem informou quem será o profissional que cuidará do caso.
‘Momento histórico’ – ou apenas mais um julgamento?
Para Marcia Esteves, sócia e CEO da Lew’Lara/TBWA e presidente da Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade), o comercial mostrou sua relevância ao ter chegado até o Conar.
“Fazia muito que não víamos uma mobilização assim sobre uma propaganda. Vivemos em um mundo polarizado, onde tudo que faz sucesso gera polarização. Olhando para o julgamento do Conar, vivemos um momento histórico. A tecnologia está avançando e precisamos mostrar que não temos todas as respostas”, diz a presidente da Abap.
Já para Flavio Waiteman, sócio e chefe de criação da agência Tech and Soul, o julgamento não deverá mudar muito a utilização de novos recursos nos comerciais.
“Não acredito que esse fato, isolado, venha mudar algo profundo em relação à utilização de tecnologia em novas campanhas. Essa aplicação de novas soluções tecnológicas na comunicação se atualiza de tempos em tempos. O consumidor é inteligente o bastante para não ser induzido ao erro. Ele sabe que o ator de Superman não voa ou que o ator de Homem-Aranha não sobe pelas paredes”, diz o publicitário.
A newsletter UOL Mídia e Marketing ouviu a opinião de Marcia, Waiteman e outros 3 profissionais (Aline Rossin, da Live; André Kassu, da CP+B e Ian Black, da New Vegas) sobre alguns pontos do debate. Confira:
Aline Rossin, CEO da agência Live
Acredito que esse caso tem uma relevância importante por ter sido, talvez, um marco de uso de inteligência artificial na indústria criativa no Brasil. A resolução desse processo vai ser um fator importante a ser analisado e entendido pelas mentes criativas daqui em diante para o uso da tecnologia como potencializadora de ideias, tanto no mercado publicitário quanto fora dele.
“O critério do que podemos chamar de “limite” em ações publicitárias é algo importante de ser estabelecido”.
O fato de Elis Regina ter partido em 1982, e essa informação ser de conhecimento massivo, talvez influencie a não levar os consumidores a um erro. A verdade é que, por enquanto, o campo jurídico ainda não conseguiu correr na velocidade que se evolui o uso da tecnologia.
Enxergo uma evolução em um ritmo acelerado e necessário para que essas discussões nos tragam clareza do que pode ou não ser feito em relação ao uso de inteligência artificial. Muitas coisas boas e melhorias para sociedade em geral podem e vão acontecer, mas ruins e perigosas podem acontecer na mesma proporção.
André Kassu, sócio e líder de criação da agência CP+B Brasil
O Conar precisa analisar o comercial porque houve uma representação ética contra a campanha. É um direito do consumidor fazer a representação e é uma obrigação do Conselho analisar se a representação faz sentido. Até este ponto não vejo uma grande polêmica, embora discorde de algumas premissas da denúncia. Toda regulamentação é necessária e tem que ser pautada seguindo as mudanças do tempo. Não vejo um limite: vejo o começo da discussão que me parece saudável termos o quanto antes.
É a primeira vez que esta tecnologia provocou encantamento e discussão nesta proporção na publicidade brasileira. Estamos falando de uma campanha que fez um enorme sucesso utilizando uma tecnologia que trouxe de volta, no âmbito do comercial, uma artista já falecida.
“O que me parece agora é que estamos frente à uma nova tecnologia – e ela nos assustou. E essa tecnologia me assusta, também.”
Só que me assusta infinitamente mais quando esta tecnologia é utilizada para disseminação de fake news por redes sociais sem nenhuma grande interferência quanto a isso. Sem lei, por assim dizer – o que não é o caso dessa campanha.
A família da Elis foi consultada, a filha, Maria Rita, participou do comercial. João Marcello Bôscoli, filho da Elis, parece extremamente feliz e emocionado com o resultado da campanha. Se o movimento tivesse acontecido à revelia dos filhos, acredito que teríamos uma outra discussão.
Flavio Waiteman, sócio e líder de criação da agência Tech and Soul
Não acredito que esse fato, isolado, venha mudar algo profundo em relação à utilização de tecnologia em novas campanhas. Essa aplicação de novas soluções tecnológicas na comunicação é constante e se atualiza de tempos em tempos.
“O recurso de se utilizar pessoas falecidas na publicidade não é nada novo – agora, apenas aplica-se as possibilidades de produção mais atuais.”
O julgamento é relevante porque o filme teve grande repercussão, é muito bem produzido, utiliza uma nova tecnologia e a trilha é espetacular. Também não vejo como uma “nova era”.
Natalie Cole gravou um disco com seu pai já falecido, Nat King Cole; Hollywood já fez diversos filmes com pessoas falecidas – como recentemente fez Star Wars, com a Princesa Leia, interpretada por Carrie Fischer. A propaganda também se utiliza desse recurso. Me lembro de uma campanha da Brahma, de 1991, onde Tom Jobim cantava e brindava com Vinicius de Morais, já falecido. Estamos falando de mais de 30 anos atrás. Imagino que as questões legais foram observadas com a anuência dos herdeiros.
O consumidor é inteligente o bastante para não ser induzido ao erro nesse caso. Ele sabe que o ator de Superman não voa ou que o ator de Homem-Aranha não sobe pelas paredes. É entretenimento, assim como o papel da Elis neste caso específico, mesmo que em um filme publicitário.
Ian Black, CEO da agência New Vegas
A manifestação do Conar é importante. Sua função é a autorregulação do mercado publicitário, a partir de um diálogo com a sociedade civil. Novas tecnologias abrem novas possibilidades e novas possibilidades demandam uma nova ética.
Questões éticas e morais importantes para manutenção da integridade da sociedade felizmente são soberanas às opiniões de publicitários, principalmente homens brancos que ainda se sentem confortáveis em atacar quem escancara os limites para o humor e a criatividade.
Liberdade de expressão não significa liberdade para cometer crimes. Possibilidade tecnológica não significa possibilidade de criação indiscriminada. Simples assim.
A questão não é sobre se os herdeiros podem ou não fazer esse tipo de concessão. Não é apenas sobre a Elis Regina. A questão é sobre o uso do corpo de uma pessoa (ainda mais sendo uma mulher) sem o seu devido consentimento. É sobre como novas tecnologias podem sofisticar as possibilidades de homens ultrapassarem limites que pareciam bem definidos sobre a apropriação e abusos aos corpos e subjetividades de mulheres.
A campanha pode não se enquadrar nas previsões legais – onde há a possibilidade de configuração de um crime, mas ela pode ser entendida pela sociedade como um incentivador (ou banalizador) de crimes. Em casos como esses, a manifestação da sociedade é não apenas importante é necessária, mas decisiva.
Marcia Esteves, CEO da Lew’Lara/TBWA e presidente da Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade)
Fazia muito que não víamos uma mobilização assim sobre uma propaganda – e isso mostra que a publicidade tradicional não morreu. Vivemos em um mundo polarizado, onde tudo que faz sucesso gera polarização. Olhando para o julgamento do Conar, vivemos um momento histórico. A tecnologia está avançando e precisamos mostrar que não temos todas as respostas.
As discussões passam por quem tem direito sobre o que. Música nunca foi um problema – mas e a imagem, com a inteligência artificial? A humanidade está vivenciando esse momento novo, em áreas que vão muito além.
Ainda bem que temos essa autorregulação, para conversarmos até que ponto podemos ir. É uma discussão urgente.
Não há uma resposta simples e absoluta. Não teremos certo e errado: precisamos aprender a viver nesse mundo. Não estamos falando apenas de novas tecnologias. É uma nova forma de se viver, de se reviver. Uma coisa é discutir a tecnologia. Outra coisa é discutir a aplicação desta tecnologia e o que ela pode gerar para a sociedade, para o lado bom e para o lado ruim.
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