Representantes do governo, da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho defenderam, na Câmara dos Deputados, a regulamentação do artigo da Constituição Federal prevendo que propriedades onde haja exploração de trabalho escravo sejam expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular.
A medida está prevista em projeto de lei (PL 1102/23) da deputada Reginete Bispo (PT-RS), que tramita apensado a um projeto de 2005 (PL 5016/05) e aguarda a criação de comissão especial para analisá-los. Mais de 50 propostas em análise na Casa tratam do tema e tramitam conjuntamente.
O assunto foi debatido na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial nesta quinta-feira (22).
Segundo a diretora-adjunta do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait), Vera Jatobá, que também defendeu a proposta, “desde 1995, a fiscalização do trabalho já resgatou mais de 60 mil trabalhadores em condição análoga à de escravidão”.
Aumento dos casos
Coordenadora-Geral de Combate ao Trabalho Escravo da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Andreia Minduca afirmou que o número de trabalhadores submetidos a essas condições está aumentando, conforme mostram dados da inspeção do trabalho.
“Em 2020, nós tivemos 943 resgates; em 2021, quase 2 mil, 1.959; em 2022, 2.587; e agora em 2023, ainda na metade do ano, já temos 1.443 trabalhadores resgatados da condição de trabalho análogo à de escravo”, apontou.
Ela destacou ainda a baixa punição dos casos. “Entre 2008 e 2019, tivemos apenas 4% dos acusados condenados pelo crime de trabalho escravo.”
O juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), Rodrigo Trindade, reforçou essa impressão de impunidade. Segundo ele, o tribunal com mais casos desse tipo no Brasil, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Nordeste, inocentou 99,52% dos acusados de submeter pessoas a condições análogas à escravidão.
Desapropriações
O Ministério dos Direitos Humanos apoia a regulamentação da expropriação das propriedades nesses casos. Segundo Andreia Minduca, o direito da propriedade deve ser respeitado desde que cumpra a função social e não pode ser colocado acima do direito à dignidade do ser humano.
Já a Coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho, Lys Cardoso, afirmou que não é possível se falar em erradicação do trabalho no Brasil sem falar em reforma agrária e defendeu que as terras onde são encontradas formas de escravidão sejam revertidas para os trabalhadores rurais.
Cadeia produtiva
Rodrigo Trindade salientou que o trabalho escravo não configura exceção no Brasil; ao contrário, é estruturante e se manifesta de diversas formas, no campo e na cidade, principalmente por meio do trabalho terceirizado.
O juiz considera “uma opção de parte da população” a demora na regulamentação da Emenda Constitucional 81, de 2014, que instituiu a expropriação de terras onde haja trabalho escravo. E defende que a regulamentação responsabilize toda a cadeia produtiva, inclusive de quem contrata serviços terceirizados.
“O tratamento sério do trabalho escravo, da erradicação do trabalho escravo no Brasil deve começar com o afastamento da ideia do ‘não era comigo’. O tomador de serviço do trabalho terceirizado precisa ser responsabilizado. Isso é essencial em qualquer projeto de lei de expropriação: reconhecer a responsabilidade da cadeia produtiva”, disse. “Porque a pessoa que faz a intermediação do trabalho do escravo, nós vimos isso nas colheitas da uva do Rio Grande do Sul, essa pessoa não tem patrimônio a ser expropriado”, completou Trindade.
O juiz defendeu ainda que as empresas onde haja trabalho escravo sejam impedidas de realizar contratar com a administração e receber subsídios públicos. Além disso, sugeriu que os casos sejam tratados pelos órgãos especializados, ou seja, a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.
Conceito de trabalho escravo
O jornalista e doutor em Ciência Política Leonardo Sakamoto destacou a importância de se manter o conceito previsto no Código Penal para se caracterizar a condição análoga à de escravo, que muitas vezes é atacado.
O conceito inclui: a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção do trabalhador. A pena prevista é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.
Outros instrumentos previstos hoje para atacar o problema são indenizações trabalhistas por dano moral, multas aplicadas pela inspeção, a lista suja do trabalho escravo, a proibição do crédito rural para quem cometer o crime e o confisco de propriedade previsto na emenda constitucional de 2014.
“Temos o problema de aplicação de leis e normas, até por conta da falta de regulamentação da PEC do Trabalho Escravo, temos a falta de auditores fiscais em número suficiente”, enumerou Sakamoto, ressaltando que esse problema deve ser reduzido com o anúncio de novos concursos.
“Temos a necessidade de mais recursos orçamentários para as instituições que combatem o trabalho escravo, temos uma necessidade de não interferência política no combate ao trabalho escravo”, acrescentou o jornalista. Ele defende uma regulamentação enxuta da Constituição, que estabeleça a responsabilidade da cadeia produtiva inteira.
Crises econômicas
Sakamoto observou ainda que, em situações de crise econômica, a vulnerabilidade para o trabalho escravo aumenta; por outro lado, com a retomada econômica os resgates de trabalhadores aumentam.
Para ele, não é possível dizer com precisão se o trabalho em condições análogas à escravidão tem aumentado ou diminuído no País, sendo possível atestar apenas quando a fiscalização do trabalho escravo está sendo efetiva.
Desembargadora aposentada do TRT-4 e professora da Unicamp, Magda Barros reiterou que 90% dos resgatados são terceirizados. “Esse dado evidencia haver uma linha tênue que separa as formas de escravidão contemporânea e a terceirização”, disse. “A terceirização é uma grave forma de precarização do trabalho”, completou.
Além disso, ela salientou que 80% dos resgatados são pretos e pardos, o que evidencia a herança escravista a ser superada.
Avaliação dos deputados
O deputado Helio Lopes (PL-RJ) criticou o conceito de condição análoga à escravidão contido no projeto, que inclui manter trabalhador em condição degradante de trabalho, submetê-lo a trabalho forçado e a jornada exaustiva. Segundo ele, os parlamentares se submetem à jornada exaustiva e os assessores acompanham essa jornada.
Lopes acredita que há na proposta tentativa de criminalizar o produtor rural. “Vejo método para transformar a propriedade privada em bem coletivo de posse do Estado. Aí não é capitalismo”, avaliou.
Ele se disse contrário a estatizar a propriedade privada. “Não podemos colocar como ameaça para quem está empregando. Temos que facilitar a vida do empregador”, opinou.
A deputada Reginete Bispo (PT-RS), autora da proposta de regulamentação e do pedido de audiência, considera, por sua vez, a medida “fundamental para desestimular e punir aqueles que aproveitam a vulnerabilidade de trabalhadores e trabalhadoras, submetendo-os a condições desumanas”.
“Se perder os bens dói, dói muito mais, deveria incomodar muito mais uma sociedade que escraviza pessoas. Eu fico muito impressionada como pessoas se manifestam em defesa da sociedade e não têm essa preocupação, essa mesma urgência em defender a vida e a liberdade dos trabalhadores e trabalhadoras deste País”, disse, rebatendo Lopes.
A deputada Erika Kokay (PT-DF) também apoiou o projeto. Embora ressalte que a PEC seja autorregulamentada, ela acredita que o projeto pode ajudar na “grande trincheira” para implementar e efetivar as medidas. Já a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) afirmou que é preciso mobilizar a sociedade civil para que a proposta possa avançar. (Fonte: Agência Câmara de Notícias)
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